segunda-feira, 24 de junho de 2013

O sempre lúcido Mauro Santayana: As massas e as ruas


As massas e as ruas

 Mauro Santayana

A máscara de Guy Fawkes, o conspirador católico inglês que queria atear fogo ao Parlamento, no início do século 17, tem sido usada, por equívoco, pelos manifestantes de nossos dias. O malogrado rebelde, que, semienforcado e, ainda consciente, teve sua genitália cortada antes de ser eventrado e  suas vísceras fervidas, para então ser esquartejado, sabia o que desejava. Sob a influência dos jesuítas, o complô, de que participava, queria uma Inglaterra católica. Seu mérito pessoal foi o de, sob tortura — que só o rei James I podia, então, autorizar, e autorizou — proteger, até o limite do sofrimento, os seus cúmplices. Instrumento de intrigas internacionais de seu tempo, que envolviam a Espanha e a Áustria — países católicos — e se valiam de dissidentes ingleses,  Fawkes é objeto de chacota em 5 de novembro de cada ano, quando se celebra a sua desdita em pequeno Carnaval nas ruas de Londres. Os vencedores escrevem a História, e a Inglaterra é, em sua esmagadora maioria, protestante até hoje.

E os que, agora, se manifestam no mundo inteiro? O que pretendem? Aparentemente, se revoltam contra o sistema econômico neoliberal, a corrupção e a inépcia dos governantes, que se refletem na desigualdade social. É também dessa forma que se identificam os manifestantes norte-americanos: a rebelião dos 99% espoliados, contra 1%, que são os espoliadores.

"A maioria se revolta contra o 
sistema econômico neoliberal, 
a corrupção e a inépcia dos governantes "

Há uma razão de fundo nessa identificação, uma vez que o homem, sendo produtor e consumidor de bens, é um ser econômico. Mas seria reduzir as dimensões do problema examiná-lo apenas a partir dos números, relativos ou absolutos. O homem pode ser, como diziam os gregos, a medida de todas as coisas, mas não pode ser medido por nenhuma coisa.

Como ser histórico, é o criador de si mesmo. É, no jogo dialético com a natureza, que ele se fez e se faz. A sua melhor definição é a de Aristóteles: é um animal político. Foi político antes mesmo que houvesse a polis: boas ou más, as regras do convívio, exigidas pela necessidade da sobrevivência, já eram políticas  antes dessa definição pelo léxico grego.

Em razão disso, todos os livros da Antiguidade, neles incluídos os sagrados, são, no fundo, manuais políticos. Tudo é política e, acima de tudo, é política a presumida negação da política.

Nos atualíssimos dias o confronto é nítido entre o capital financeiro,  que pretende controlar tudo — mediante as autoridades governamentais, que escolhem com o financiamento das eleições — e os cidadãos. Autoridade e cidadão, mesmo nos regimes democráticos mais evoluídos, são categorias que se contrastam. Os eleitores nomeiam as autoridades, mas o mandato não é, nem pode ser, imperativo. Imperativas são as circunstâncias que separam o sentimento do eleitor, no momento do voto, do comportamento de seu mandatário, quando no Poder Legislativo e no Poder Executivo.

O carisma de alguns governantes ameniza essa discórdia, justificando o governante diante de seus prosélitos, em nome, valha a recorrência, do peso ou da ditadura das circunstâncias.

Não há dúvida de que passamos por um tempo de desalentadora mediocridade no governo dos estados nacionais. O carisma de alguns líderes — e este é o caso, entre outros, do presidente Barack Obama — tem prazo de validade, como certos alimentos industriais. Em alguns meses, como estamos vendo no caso de Hollande, na França, o entusiasmo fenece — e é substituído, num primeiro momento, pela decepção.

Nos sistemas presidencialistas puros, e onde há o instituto da reeleição, o segundo mandato não tem a solidez do primeiro. Se o governante não for extremamente hábil, corre o risco de se transformar em um lame duck, um pato claudicante sobre os charcos escorregadios.

A renúncia dos eleitos em assumir sua plena responsabilidade de garantir o bem-estar  e a independência das sociedades nacionais abriram caminho para que o neoliberalismo corroesse, até os alicerces, a autonomia dos dirigentes políticos. O início da curva histórica ocorreu  a partir do conluio estabelecido, nos anos 80, entre Reagan, Thatcher e Wojtila, com a cooptação de Gorbatchev — hoje conhecido em seus detalhes,  constrangedores. 

Os legisladores e governantes foram transmudados em simples marionetes dos donos do capital, que dominam o mundo. Esses têm, em suas mãos, os maiores bancos, e, mediante eles, ou diretamente, as maiores empresas transnacionais do mundo. Os bancos e essas corporações controlam todos os recursos naturais e ditam os rumos da economia mundial.

"Os legisladores e governantes 
foram transmudados em 
simples marionetes dos donos do capital "

Seu domínio vai ao ponto de provocar a  fome de alguns povos, por meio do controle dos alimentos — da produção dos fertilizantes, do uso da água, da fixação dos preços, pelo mercado de futuros, a estocagem e a especulação — dos cultivos até a prateleira dos supermercados. Isso sem falar nos minerais, do ferro ao nióbio, do urânio a terras raras. 

As manifestações revelam a inadaptação da vida humana aos módulos impostos pela sociedade de produção e consumo, agravadas pela crise histórica da contemporaneidade. Elas pedem e anunciam uma nova forma de convívio — mas qual?

Estamos diante de uma nova fase da rebelião das massas, já examinadas com precisão por Ortega y Gasset, e Elias  Canneti, em “Masse und Macht”,  e hoje mobilizáveis em instantes pelos meios eletrônicos que pretendem controlá-las.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

CSNA3: Ficar ou sair?



Infomoney recomendando fugir de comodities, em reportagem de 29/05.
Bastter, que sempre demonstra lucidez, aponta para a relação cotação x lucros, onde podemos perceber que a queda na rentabilidade desde 2009 vem sendo acompanhada pelo preço do papel.
Assim, está criado o dilema: permanecer em CSNA3 ou pular fora? No momento perdendo 0,66 por ação? Esta será uma semana de decisão...

domingo, 2 de junho de 2013

Foucault e o neoliberalismo

O filósofo francês, um dos pensadores mais fecundos do século XX, não era economista. Talvez por isso entendeu com maior profundidade o neoliberalismo

Luiz Gonzaga Belluzzo é economista e professor, consultor editorial de CartaCapital, onde originalmente foi publicado o texto abaixo...

O mundo se abriu para o novo milênio dominado por certezas que hoje se desmancham sob a ação demolidora da crise financeira. A ideologia neoliberal, quase sem resistências, tentou demonstrar que, com a queda do Muro de Berlim, o espaço político e econômico tornou-se mais homogêneo, menos conflitivo, com a concordância a respeito das tendências da economia e das sociedades. Não há mais razão, diziam, para se colocar em discussão questões anacrônicas, como a reprodução das desigualdades ou as tendências dos mercados a sair dos trilhos, frequentemente destrambelhados pelos excessos nascidos de suas engrenagens.
Após a crise, os porta-vozes desse quase consenso, economistas e que tais, recolheram-se ao silêncio. Passado o vendaval que ajudaram a semear, já agarrados aos salva-vidas lançados pela famigerada intervenção dos governos, entregaram-se a tortuosas e acrobáticas manobras para justificar suas convicções.
Michel Foucault, um dos pensadores mais fecundos do século XX, não é economista. Talvez por isso tenha compreendido com maior abrangência e profundidade o significado do neoliberalismo. Contrariamente ao que imaginam detratores e adeptos, diz ele, o neoliberalismo é uma “prática de governo” na sociedade contemporânea. O credo neoliberal não pretende suprimir a ação do Estado, mas, sim, “introduzir a regulação do mercado como princípio regulador da sociedade”.
Foucault dá importância secundária à hipótese mais óbvia sobre a arte neoliberal de governar, a que afirma a imposição do predomínio das formas mercantis sobre o conjunto das relações sociais. Para o filósofo, “a sociedade regulada com base no mercado em que pensam os neoliberais é uma sociedade em que o princípio regulador não é tanto a troca de mercadorias quanto os mecanismos da concorrência... Trata-se de fazer do mercado, da concorrência, e, por consequência, da empresa, o que poderímos chamar de ‘poder enformador da sociedade’”.
As transformações ocorridas nas últimas décadas deram origem a fenômenos correlacionados que não se coadunam com os princípios do liberalismo clássico e sua imaginária concorrência perfeita protagonizada por um enxame de pequenas empresas sem poder de mercado.
A nova concorrência louvada pelos neoliberais admite a “centralização” da propriedade e o controle dos blocos de capital. O processo se deu pela escalada dos negócios de fusões e aquisições, alentada pela forte capitalização das bolsas de valores nos anos 80, 90 e 2000, a despeito de episódios de “ajustamento de preços”. A “terceirização” das funções não essenciais à operação do core business aprofundou a divisão social do trabalho e propiciou a especialização e os ganhos de eficiência microeconômica, além de avanços na produtividade social do trabalho.
A grande empresa que se lança às incertezas da concorrência global necessita cada vez mais do apoio de condições institucionais e legais – sobretudo na derrogação das regras de proteção aos trabalhadores – que a habilitem à disputa com os rivais em seu próprio mercado e em outras regiões.
Elas dependem do apoio e da influência política de seus Estados Nacionais para penetrar em terceiros mercados (acordos de garantia de investimentos, patentes etc.), não podem prescindir do financiamento público para exportar nos setores mais dinâmicos, não devem ser oneradas com encargos tributários excessivos e correm o risco de serem deslocadas pela concorrência sem o benefício dos sistemas nacionais de educação e de ciência e tecnologia.
Tanto a “nova ordem mundial” como a sua crise foram construídas e deflagradas no jogo estratégico disputado entre as empresas globais e seus respectivos Estados. Esse fenômeno político-econômico envolveu os protagonistas relevantes da cena global: os Estados Unidos, apoiados em sua liderança financeira e monetária, e a China, ancorada em sua crescente superioridade manufatureira.
A superação da crise atual não depende apenas da ação competente dos Tesouros Nacionais e dos Bancos Centrais, mas supõe um delicado rearranjo das relações políticas e concorrenciais que sustentaram o modelo sino-americano. Parece que não é fácil.