Luiz Gonzaga Belluzzo é economista e professor, consultor editorial de CartaCapital, onde originalmente foi publicado o texto abaixo...
O mundo se abriu para o novo milênio dominado por certezas
que hoje se desmancham sob a ação
demolidora da crise financeira. A ideologia neoliberal, quase sem resistências,
tentou demonstrar que, com a queda do Muro de Berlim, o espaço político e
econômico tornou-se mais homogêneo, menos conflitivo, com a concordância a
respeito das tendências da economia e das sociedades. Não há mais razão,
diziam, para se colocar em discussão questões anacrônicas, como a reprodução
das desigualdades ou as tendências dos mercados a sair dos trilhos,
frequentemente destrambelhados pelos excessos nascidos de suas engrenagens.
Após a crise, os porta-vozes desse quase consenso,
economistas e que tais, recolheram-se ao silêncio. Passado o vendaval que
ajudaram a semear, já agarrados aos salva-vidas lançados pela famigerada
intervenção dos governos, entregaram-se a tortuosas e acrobáticas manobras para
justificar suas convicções.
Michel Foucault, um dos pensadores mais fecundos do século
XX, não é economista. Talvez por isso tenha compreendido com maior abrangência
e profundidade o significado do neoliberalismo. Contrariamente ao que imaginam
detratores e adeptos, diz ele, o neoliberalismo é uma “prática de governo” na
sociedade contemporânea. O credo neoliberal não pretende suprimir a ação do
Estado, mas, sim, “introduzir a regulação do mercado como princípio regulador
da sociedade”.
Foucault dá importância secundária à hipótese mais óbvia
sobre a arte neoliberal de governar, a que afirma a imposição do predomínio das
formas mercantis sobre o conjunto das relações sociais. Para o filósofo, “a
sociedade regulada com base no mercado em que pensam os neoliberais é uma
sociedade em que o princípio regulador não é tanto a troca de mercadorias
quanto os mecanismos da concorrência... Trata-se de fazer do mercado, da
concorrência, e, por consequência, da empresa, o que poderímos chamar de ‘poder
enformador da sociedade’”.
As
transformações ocorridas nas
últimas décadas deram origem a fenômenos correlacionados que não se coadunam
com os princípios do liberalismo clássico e sua imaginária concorrência
perfeita protagonizada por um enxame de pequenas empresas sem poder de mercado.
A nova concorrência louvada pelos neoliberais admite a
“centralização” da propriedade e o controle dos blocos de capital. O processo
se deu pela escalada dos negócios de fusões e aquisições, alentada pela forte
capitalização das bolsas de valores nos anos 80, 90 e 2000, a despeito de
episódios de “ajustamento de preços”. A “terceirização” das funções não
essenciais à operação do core business aprofundou a divisão social do trabalho
e propiciou a especialização e os ganhos de eficiência microeconômica, além de
avanços na produtividade social do trabalho.
A grande empresa que se lança às incertezas da concorrência
global necessita cada vez mais do apoio de condições institucionais e legais –
sobretudo na derrogação das regras de proteção aos trabalhadores – que a
habilitem à disputa com os rivais em seu próprio mercado e em outras regiões.
Elas
dependem do apoio
e da influência política de seus Estados Nacionais para penetrar em terceiros
mercados (acordos de garantia de investimentos, patentes etc.), não podem
prescindir do financiamento público para exportar nos setores mais dinâmicos,
não devem ser oneradas com encargos tributários excessivos e correm o risco de
serem deslocadas pela concorrência sem o benefício dos sistemas nacionais de
educação e de ciência e tecnologia.
Tanto a “nova ordem mundial” como a sua crise foram
construídas e deflagradas no jogo estratégico disputado entre as empresas
globais e seus respectivos Estados. Esse fenômeno político-econômico envolveu os
protagonistas relevantes da cena global: os Estados Unidos, apoiados em sua
liderança financeira e monetária, e a China, ancorada em sua crescente
superioridade manufatureira.
A superação da crise atual não depende apenas da ação
competente dos Tesouros Nacionais e dos Bancos Centrais, mas supõe um delicado
rearranjo das relações políticas e concorrenciais que sustentaram o modelo
sino-americano. Parece que não é fácil.
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