Demolição sem projeto
Carlos Lessa
(jornal Valor Econômico
em 04/06/2014)
O massacre, no mês passado, de uma dona de casa
em Guarujá, perto de São Paulo, é apavorante. Houve o vazamento de um retrato
falado, feito em 2012 pela polícia do Rio de Janeiro, de uma suposta assassina
de crianças em rituais de magia negra na Baixada Fluminense. Um periódico local
o reproduziu e a imagem circulou pela internet nas mídias sociais.
Uma dona de casa cristã recolhe sua pequena
Bíblia que estava esquecida na igreja local, faz compras no mercado e, ao sair,
dá uma fruta para uma menina que estava na calçada. Alguém gritou "é a
bruxa" e a senhora foi imediatamente silenciada, teve sua bolsa aberta e
revistada, onde encontraram o retrato de duas crianças e um livro de capa
vermelha. A partir daí, foi imobilizada e mortalmente agredida por um grupo de
homens, sendo que mais de cem moradores assistiram ao massacre. Os retratos
eram das duas filhas da senhora, e o livro de capa vermelha era sua Bíblia.
Queimar bruxas foi frequente na Idade Média. Em
1692, em Salém, perto de Boston, 19 mulheres foram enforcadas e uma delas
esmigalhada pela população em pânico quanto a bruxas. O episódio em
Salém-Guarujá é a mais dramática evidência noticiada da total e absoluta
desconfiança no ser humano, na Justiça e na polícia. O justiçamento histérico é
um pesadelo. É indicador de uma terrível desagregação da confiança na ordem
pública; marca a evolução dos homicídios registrados que, nas estatísticas dos
últimos 12 meses, atingiu 56 mil brasileiros.
O justiçamento histérico é indicador de
uma terrível desagregação da confiança na ordem pública e na Justiça
Os indicadores de desordem exigem uma recuperação
da trajetória genética. Em 1930, tem início a Era Vargas que - com Vargas,
contra Vargas e sem Vargas - se prolongou até os anos 80. Havia um projeto
nacional, que perseguia a industrialização e a urbanização como um movimento
transformador que iria produzir uma transformação social no Brasil. A década
dos 80 foi um período balizado pelo fim negociado com a ditadura militar e a
promulgação da Constituição de 1988.
O desvio da eleição direta evitou passar a limpo
o autoritarismo brasileiro e a Constituição recolheu o sonho da justiça social,
com a preservação dos instrumentos ligados a meio século de nacional-desenvolvimento.
A devastadora aceleração inflacionária passa a ser acompanhada de uma rápida
desconstrução da Constituição; a prática das Medidas Provisórias permite
distorções no sistema de poderes republicanos. A soberania começa a ser erodida
pela adoção de orientações do Consenso de Washington.
Fernando Henrique Cardoso, eleito presidente da
República, afirma que "terminou a Era Vargas" e incorpora
procedimentos demolidores da soberania e corrosivos do Estado nacional. O
binômio privatização-desnacionalização modifica as forças produtivas do país. O
modesto crescimento econômico é aceito sem a formulação de nenhum projeto
nacional, a não ser que se aceite a adesão irrestrita à globalização e à
consigna de "exportar é a solução". A exportação crescente de
matérias-primas e alimentos corresponde a uma atrofia do sistema produtivo
industrial e à redução significativa da taxa de investimento. A figura do
empreiteiro é substituída pela do banqueiro.
Na entrada do novo milênio, sem a explicitação de
qualquer novo projeto nacional, o Brasil, após as vicissitudes do opressor
endividamento externo, entra numa fase singular, aonde a relação de trocas se
move a favor dos preços de matérias-primas e alimentos, combinada com a queda
de preço das importações.
A partir de 2002, tem início a prioridade aos
sonhos sociais. Entre 2003 e 2012, com as condições excepcionalmente favoráveis
do comércio exterior, houve um crescimento da renda da população brasileira,
calculada pelo IBGE (Pnad), maior que o crescimento da economia. O Instituto
Data Popular estima que 54% da população do país fazem parte da classe média.
Porém, na ausência de qualquer projeto nacional, a macroeconomia permaneceu
atrelada aos critérios do Consenso de Washington: houve continuidade nas privatizações,
foram mantidas as regras para os vitoriosos bancos, e ausência de qualquer
visão estratégica de longo prazo. O Projeto Bolsa Família é socialmente
meritório; faz contraponto com a espetacular lucratividade patrimonial dos
bancos e a trajetória fugaz das empresas X, de Eike Batista.
O endividamento das famílias sustentou a
atividade econômica e garantiu a modesta evolução do segmento metal-mecânico e
eletro-eletrônico. Ao mesmo tempo, as cadeias produtivas se atrofiaram e as
facilidades de importação, combinadas com o jogo financeiro, mantiveram em
nível medíocre a taxa de investimentos. Houve a combinação de uma melhoria
social com uma estagnação relativa.
Krugman diria que "as ações de governo
restauraram a confiança financeira, porém não repuseram a prosperidade".
Nos EUA, deplora-se a carga do alto endividamento das famílias como o legado
perverso da crise imobiliária. O Fed foi a favor de salvar todos os bancos, mas
contra salvar famílias endividadas. No Brasil, estamos no limiar da alta e
crescente dívida familiar ver corroído seu sistema de sustentação da atividade
econômica. Isto colocará o dilema da "autonomia" do Banco Central.
Salém-Guarujá explicita dramaticamente a crise de
representatividade política, de confiabilidade nas instituições.
A demolição da superestrutura institucional do
Estado nacional-desenvolvimentista não abriu caminho a nenhum projeto de
reestruturação do setor público. Infelizmente, multiplicam-se também os
indícios de demolição da superestrutura cultural brasileira.
Desenho: Tubarões Voadores (Luiz Gê)
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