domingo, 6 de setembro de 2009

Serviço Militar Obrigatório

Renato, eu fui me "apresentar" no exército um pouco mais tarde, mas as situações descritas por você foram mais ou menos as mesmas. Não pergunto o que há de "real" e o que há de "ficcional" em seu texto (seria um pergunta muito cretina, aliás), mas fico encasquetado: e quantos "Zezinhos" não estão espalhados por esse Brasil afora? Hoje, sem ainda ter atingido o tal "caminho do meio", continuo achando Serviço Militar Obrigatório um "desserviço". Gostei do texto, tem bom ritmo.
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Estava no ponto de ônibus, dia de se apresentar no quartel, esperava o Zezinho, ambos de 64 e como vários outros garotos com o mesmo destino: Ir ao exército, marinha ou aeronáutica, servir ou não a pátria? Zé apareceu e junto com ele, mas não vindo junto, somente também com a mesma razão de lá estar, um gordinho que morava ali pelas imediações da Barão de Mesquita. Íamos todos ao Rocha, num quartel que ficava mais ou menos uns 40 minutos de ônibus, perguntava-nos por quê, já que havia um quartel perto de nossas casas, onde costumávamos jogar bola todo final de semana. O Zé era um cara de família mais pobre, já carregava dois P: Preto e pobre, seu pai, “seu” José, era o porteiro do prédio do Nélson, que viria a morrer de câncer antes dos 40, depois conto, e como a maioria dos porteiros, pouca instrução, sua mãe era enfermeira, não lembro de qual hospital e moravam nos fundos do prédio, num “puxadinho” de sala e quarto, assim seguia sua vida lutando pra se equilibrar entre os filhos dos moradores do prédio e do prédio colado, por exemplo, o Juninho, filho de pai advogado, morando num apartamento de quatro quartos e dois banheiros, um grande amigo e a turma das proximidades, eu, que mesmo que morando num apartamento pequeno, quarto e sala, mas tinha inegavelmente melhores perspectivas, pois sabemos o que a sociedade (não me tiro desta não, tenho também a minha parcela de culpa) faz com os negros, especialmente os menos favorecidos em renda e cultura. Em nossos papos pré-alistamento ele ainda era indeciso quanto à caserna ou não, pois ao mesmo tempo em que sonhar não custa nada e nessa época todos sonhávamos com a música ou o futebol, a realidade já batia a porta, e um emprego não iria nada mal, só ele sabia a cobrança que já havia em casa. O gordinho no papo do ônibus, nos disse que era doido pra servir o exército, que estava malhando há seis meses e havia emagrecido 12 quilos para conseguir seu objetivo, assim é a vida, enquanto eu, modestamente atlético, não por força de vontade, mas por força da genética, estava doido pra escapar da roupa verde oliva, nessa fase já havia começado a ler “O Capital” e apesar de não entender porra nenhuma, já falava de “mais valia” com uma intimidade de compadre. Quando digo que comecei a ler, é somente isso comecei, pois nunca me animei a terminar, mas o importante, é que via os milicos demonizados e os comunas como a redenção social da humanidade, na juventude tendemos a ser assim, ou é isto, ou aquilo, o caminho do meio, o caminho do equilíbrio, só depois de um tempo, só depois de umas porradas. Chegamos cedo e fomos encaminhados a um pátio descoberto, sol a pino, bem melhor que chuva, com certeza, mas um calor de rachar, era início de ano, pleno verão e lá ficamos sentados, do jeito que dava, aquele monte de moleques, vindo dos mais variados lugares, bairros e com certeza uma total diversidade de classe social, dava pra analisar, só pelas roupas e tênis, que nessa época ou eram Kichute, Bamba ou Rainha. Importado só pra quem tinha muita grana, como os “All Star”. Então era Kichute pros fodidos, Bamba pros mais ou menos, Rainha pra quem tinha alguma graninha e os “All Star” pra quem tinha grana de verdade. Sentados ficamos, uma, duas, três e não sei quantas horas, de vez em quando passava um soldado falando uma gracinha, sacaneando quem tinha cabelo grande, quem estava muito arrumadinho, etc. Eu já escolado pelos papos da turma mais velha, já fui de cabelo curto e com uma roupa absolutamente neutra, a idéia era esta, não chamar a atenção de forma alguma, entrar e sair o mais rápido possível e sem traumas. Aos poucos fomos sendo chamados, em ordem alfabética, então me fodi, pois meu nome começa com R, o Zé e o gordinho foram antes e só tive notícias deles depois lá na rua. Na minha vez, minha barriga já roncava, ainda mais que aos 17 anos comemos igual uns cavalos, deviam ser umas duas da tarde, quando meu grupo foi levado para outra sala e ficamos enfileirados. Veio a ordem: Todos tirando a roupa, inclusive a cueca. Na rua avisaram para não olhar para os lados, que seria coisa de viado e mais cuidado ainda para não ficar de pau duro, delito gravíssimo. Não sabia ainda o que era ficar pelado na frente dos outros, ainda mais um monte de homens, digo hoje que ficar de pau duro naquela situação seria impossível, mas na ocasião não sabia e como nesta época pra ficar de pau duro bastava uma mulher mostrando parte dos peitos (sem silicone) numa revista, dá pra imaginar o medo de uma ereção involuntária. O médico vinha, um a um, perguntava algumas coisas, sente dor aqui, ali, acolá, mandava a gente levantar o saco, ia anotando numa prancheta, depois veio um enfermeiro com uma placa cheia de letrinhas, para exame de vista, nos pediu para falar a primeira coluna, a terceira e a quinta, nesta apesar de enxergar perfeitamente, falei todas as letras erradas, na esperança de não ser convocado, mas fiquei só na esperança, pois fomos levados para outra sala, aonde conforme íamos entrando, éramos chamados pelo nome e já divididos em dois grupos. Dava pra ver quem ia ficar e quem is sobrar, pois um dos grupos era formado pela turma que usava óculos de grau forte, gordos, baixinhos, mancos, etc. A outra turma se entreolhava e já sentia o coturno apertando os calos, pois no que o grupo estava se formando e eu já entre eles, vieram vários soldados com fita métrica, medindo nossas cabeças, perguntando quanto calçávamos, etc. Ali tremi, pois não queria passar um ano no quartel, além das minhas convicções na época, queria estudar, trabalhar, enfim, começar a ganhar dinheiro. Ao ser questionado sobre o meu grau de instrução, falei que iria prestar vestibular aquele ano, ali fui separado outra vez, para outro grupo, disseram que iria para a escola de oficiais da reserva, CPOR, que já conhecia pelas histórias de meu tio Celso. Para mim que era uma coisa normal, já ter concluído o segundo grau, fiquei surpreso com tantos garotos, ainda na primeira série e tantos outros somente com o primário. Na nova sala, me deram um teste, estilo psicotécnico, teria uma hora para responder, entregar e ir embora, porém teria que voltar dali a três dias. Se me saísse bem na prova, iria para o CPOR, se me desse mal, seria soldado raso. Estariam me esperando. Eu tinha três dias pra arrumar um jeito de não servir o exército. Na rua procurei o Zé, ele havia ficado na mesma situação, feito o teste e voltaria depois, pra saber o resultado, eu naquele mesmo dia, fui atrás do tio Celso, contei a história e ele me disse que conhecia um coronel, do colégio militar, que poderia me dar uma ajuda, deu um telefonema e pediu que eu procurasse o tal coronel, que ele me daria uma carta para ser entregue no dia da apresentação. Feito, procurei o coronel e a carta já estava a minha espera. Viva! Retornei no dia marcado e conforme instruções entreguei a pessoa que “iria bater um papo” comigo, um tipo de entrevista, pois desta vez não houve grande demora, chegando, fui encaminhado a uma sala, com uns bancos, alguns garotos, como eu esperando e fui logo chamado a entrar, ao entrar me identifiquei e antes que pudesse falar alguma coisa, fui cumprimentado, não sei se era um tenente ou um sargento, só sei que ele me cumprimentou pelo teste e disse que eu estava no CPOR. Foi então que comecei a explicar e fui dando logo a carta, falando que teria que trabalhar (a carta dizia o mesmo, confirmando que eu já teria um bom emprego garantido) e já estava matriculado na faculdade (na verdade, ainda esperava o resultado do vestibular), ou seja, eu queria mostrar que o Brasil não precisava se preocupar comigo, que haveria menos um vagabundo no mundo. O militar me olhou, sorriu e disse: Que pena, por que os bons sempre querem sair, só deixando aqui os que não prestam. Você tem certeza? Olha no CPOR você será tenente... Escutei. Era nesta hora a minha função. Depois disse que conhecia um pouco a vida militar, tinha tios oficiais, os admirava, mas que preferia a vida civil, agradeci. Ele fez a sua parte e também escutou, me esticou a mão. Apertamos e parti. Voltaria somente depois de uns quinze dias, para pegar meu certificado de reservista. O gordinho, depois eu soube, não conseguiu servir, quanto ao Zezinho, não se saiu bem na prova do CPOR, foi servir pelo menos perto de casa, no quartel da Polícia do Exército, era um negro forte e risonho, gostava de música, tocava banjo no auge do pagode, tinha inscrito no mesmo “Zezinho Simpatia”, ficou no exército o tempo que deu, de soldado a cabo, de cabo a sargento, só que chega uma hora em que é obrigado a dar baixa, então é que o bicho pegou, pois o que você vai fazer, com quase trinta anos, quando o que aprendeu foi somente à vida da caserna, a vida militar, a vida das armas? É claro que ele tem sua culpa, pois sabia que esse dia chegaria e não se preparou para ele, mas devia ter esperança de viver da vida de armas na vida privada, então são dois caminhos, ou da segurança privada, ou de fomentador da insegurança, a vida do crime. A última notícia que tive do Zé, foi através do Evandro, ele havia sido pego assaltando um táxi.